NAQUELE TEMPO, ERA MESMO ASSIM
Pertenço a um grupo de
nascidos em Angola, com mais de 65 anos de idade, isto é, adultos no 25 de
Abril de 1974, ali criados numa sociedade desigual, social e economicamente,
constituída por duas comunidades separadas por condições de vida extremamente diferentes,
uma minoritária, predominantemente de brancos de origem europeia, habitando bairros
estruturados, mais ou menos confortáveis e a outra, a larga maioria, de negros
e alguns mestiços, sobrevivendo em musseques, aldeias de casebres de
pau-a-pique e adobe, sem saneamento básico nem água canalisada, excepto uma
bica de água nalgumas delas, na periferia das cidades e vilas, em estado de
degradante subdesenvolvimento.
Era mesmo assim, até à década
de 60 do século XX.
Ainda não me referi a racismo,
porque tal pressupõe a existência de várias raças, quando ficou demonstrado
cientificamente que há apenas raça humana que foi-se adaptando, ao longo de
séculos, milénios, às diversas condições ambientais, dos locais onde se
instalou, em diferentes regiões do globo, o que pode explicar a variabilidade
da coloração da sua pele, mais ou menos escura, com tonalidades diversas,
embora os chamados caucasianos, designados brancos, tenham coloração da pele
rosada, avermelhada, amarelada, portanto não branca.
Contudo, apesar da definição
actual de uma única raça humana, limitante da definição de racismo, tal não
significa que não existisse, em Angola, discriminação dos homens e mulheres negros,
votados a um ostracismo inegável, nas condições socio-económicas miseráveis,
atrás referidas, com implicações negativas de toda a ordem, nomeadamente na sua
saúde e bem estar.
Salvo uma pequena minoria de negros
que eram trabalhadores sem qualificação, empregados do Estado e do Comércio
(contínuos, auxiliares de limpeza, empregados de mesa, ardinas, cauteleiros, etc.),
elas e eles eram, na sua maioria, serviçais, cozinheiros, criados e lavadeiras,
nas casas de brancos e de alguns mestiços, sem direitos de cidadania, com
baixos salários e nenhuma protecção social. Vem a propósito referir que a
chamada maciça de portugueses da «metrópole», a maioria deles sem qualificação
profissional, teve como resultado a competição nos empregos mais baixos (acima
citados) com os negros, ultrapassando-os e lançando-os no desemprego, porque o
ser branco, mesmo analfabeto, conferia-lhe um estatuto de superioridade.
Assim, era bem evidente a supremacia
dos brancos e também de alguns mestiços, filhos daqueles, constituídos numa
pequena burguesia, sobre os negros, considerando-se normal a ostensiva
sobranceria, com o tratamento por tu para crianças, novos e velhos, alimentação
escassa e deficiente, não se tendo ou não querendo ter, consciência da clara
segregação social, uma dolorosa e indesmentível realidade. O castigo físico, ou
o corte no parco salário, como reprimenda à mais pequena prevaricação ou
desleixo, era comum, ou então, a queixa à autoridade administrativa que punia fisicamente
ou pelo uso de palmatória/chicote e, eventualmente, trabalho forçado. Outro
aspecto do abuso exercido pelo estado, eram os contratos de trabalho,
estabelecidos entre a autoridade administrativa, os angariadores e as empresas,
sem conhecimento nem consentimento dos trabalhadores contratados, que podiam
ser deslocados para longe da família e do seu meio, auferindo montantes irrisórios,
muitas vezes perdidos nas cantinas dos empregadores, ao ponto de regressarem a
casa, (quando regressavam), com um cambriquito (cobertor) e parcos tostões.
A aparente passividade dos
negros perante o abismo socio-económico entre as duas comunidades e a ausência
de direitos de cidadania, era condicionada quer pela submissão ancestral à
autoridade do colono, como pela repressão policial e pidesca, sobre eles
exercida, foi-se esbatendo nas grandes cidades, com a tomada de consciência dos
direitos humanos, determinante da crescente revolta, terreno fértil para a
intervenção progressiva dos defensores daqueles direitos, da sua emancipação,
reivindicação de autodeterminação e independência. Foi assim que, em 1961, se
deu a sublevação, apesar de violentamente reprimida, primeiro em Janeiro, na
Baixa do Cassange, e depois em Luanda em Fevereiro, que se iniciou em Angola a Guerra Colonial.
A partir de 1961, tarde e a
más horas, Salazar viu-se forçado a mudar a sua política colonial, com a
patética frase «para Angola e em força», decretando a mobilização de milhares
de soldados e, afectando à acção, vultuosos recursos militares e financeiros.
Por outro lado, deu-se início a alterações em toda a governação, tendo-se
investido nas diversas actividades económicas, comerciais e industriais, antes
bloqueadas, para protecção às empresas majestáticas da chamada «metrópole», persistindo
o subdesenvolvimento da colónia. Do ponto de vista social, a educação e o ensino
passaram a constituir prioridades e as relações sociais entre brancos e negros
foram objecto de medidas cosméticas que se podem consubstanciar no chamado
«sêlo de povoamento», onde estavam estampados, um negro, um mestiço e um
branco… De facto, tarde demais, tudo melhorou em Angola em resultado da eclosão
da guerra, o desenvolvimento da colónia que passou a chamar-se província ultramarina,
foi uma realidade indesmentível, reduzindo-se a discriminação social, mas a
semente reivindicativa da autodeterminação e independência de Angola, pelos
movimentos de libertação, tornou-se imparável.
Não é mero detalhe histórico a
referência aos milhares de mortos e estropiados, portugueses e angolanos e
famílias destroçadas, porque Salazar se recusou obstinadamente a discutir com
os movimentos de libertação, a pedido destes nos anos 40/50 do século XX, para a
preparação em devido tempo e nas condições adequadas, da autodeterminação e
ulterior independência, o que poderia ter evitado que a descolonização de
Angola causasse tanto sofrimento a centenas de milhar de portugueses.
Depois desta resenha, onde
procurei evidenciar a discriminação social dos negros em Angola, houve
manifestações de intolerância de brancos para negros e progressivamente, como
sua consequência, de negros para brancos. Ainda hoje, há quem rejeite que em
Angola tivesse existido a discriminação social descrita, não aceitando
assumi-lo, quando se trata de uma realidade indesmentível. Não está em causa
exigir-se sentimentos de culpa, mas sim o reconhecimento da situação
discriminatória, o que revelaria humildade e nobreza perante a História que não
se reescreve.
Concluindo, trago uma
lamentável ocorrência verificada após as eleições legislativas no passado dia
6, através de uma carta divulgada na net, invectivando Jociane Katar Moreira, hoje
deputada à Assembleia da Republica, cujo conteúdo é uma manifestação de
intolerância primária por ela ter sido eleita, quando se faz referência a uma mulher estrangeira e
ela é cidadã portuguesa, de côr (qual côr? porquê esta referência?), uma
designação da gíria racista, e acabando por acusá-la de racista, ingrata,
desrespeitosa e sem vergonha, sem a imperativa fundamentação, relevando por fim
a sua gaguez, como se se tratasse de uma inferioridade, quando ela revelou
coragem, ao aceitar o desafio, de se tornar porta-voz de um partido, o Livre,
que a escolheu.