terça-feira, 14 de abril de 2020




O BILHETE DA TAAG

Ao chegar ao Laboratório de Hematologia do Hospital Universitário de S.Paulo, onde concluía um estágio de preparação para doutoramento, na manhã de 25 de Abril de 1974, circulavam insistentes rumores sobre a eclosão de um golpe de estado em Portugal, desconhecendo-se quais os seus mentores, temendo-se que se tratasse de uma iniciativa da ultra direita civil e militar, descontentes com a ambiguidade e a proverbial indefinição do primeiro-ministro Marcello Caetano.
Entretanto, fui recebendo vários telefonemas, entre os quais de minha mulher, todos eles relacionados com o mesmo sobressalto até que, pela rádio, ficámos a saber que não se confirmava o mau agoiro admitido e exultámos então com o cariz progressista do acto revolucionário eclodido, enquanto que nos beliscávamos repetidamente, temendo ainda uma eventual reviravolta.
Perante o inesperado, mas há muito desejado acontecimento, todo o planeamento de vida futura ficou posto em causa, pois que a prioridade passou a ser o contributo para a democratização do país, de todas as suas instituições, com repercussão óbvia nas colónias, nomeadamente em Angola, a minha terra e dos nossos filhos.
Antevia-se o fim do receio do ouvido amplificador dos bufos, da hipocrisia do selo de povoamento e da província ultramarina, do ridículo Portugal do Minho a Timor, e mais que tudo a perspectiva de libertação dos povos português, angolano e das outras colónias, até então negada pela doentia obstinação de Salazar que rejeitava os ventos da História com o fim ao colonialismo.
Assim, de imediato, regressei à minha Faculdade para saborear in loco a liberdade e integrar-me nas imperativas transformações para a já referida democratização da nossa Universidade,
O planeado doutoramento, sobre hematologia de bovinos, com um estágio preparatório sob a direcção do Prof. Gil da Costa da Faculdade de Medicina de Luanda, no Hospital Universitário de S.Paulo, que iria ser prosseguido na École Vetérinaire d’Alfort, em França, sob a orientação do Prof. Petit, ficou adiado sine diae, porque considerei prioritários os objectivos atrás referidos. Pelas mesmas razões foi igualmente suspenso o estágio sobre técnicas de electroforèse aplicáveis em hematologia bovina, nesta mesma École, destinado a minha mulher, Mª Amália.
Desde logo decidimos, o corpo docente da Faculdade, preparar a realização da eleição universal da Comissão Directiva, pelos trabalhadores, estudantes e docentes.
Neste propósito, importa salientar a importância dos movimentos de libertação, FNLA, UNITA e MPLA, avultando a grande implantação sociológica regional da UNITA, por razões tribais e religiosas.
Duas listas foram então constituídas e apresentadas a sufrágio, evidenciando-se desde logo, na sua constituição, as simpatias pelos movimentos de libertação. Uma das listas, a A, era composta por apoiantes dos dois primeiros, UNITA e FNLA, e a outra, a B, sem conotação política expressa, embora integrando simpatizantes do MPLA.
Desta eleição resultou a surpreendente vitória da Lista B para a constituição da Comissão Directiva da Faculdade de Medicina Veterinária do Huambo, tendo como presidente o Prof. Penha Gonçalves e eu próprio como vice-presidente, os dois primeiros nomes da lista concorrente, representantes dos docentes.
Assim, o pleito eleitoral contrariou as previsões que apontavam para uma vitória esmagadora da lista A, quando saíu vencedora a lista B, resultado que frustrou as hostes da UNITA, particularmente o seu chefe Jonas Malheiro Savimbi que, de seguida, instigou a prática de atitudes de intimidação de toda a gente, levando-o a invadir e interromper assembleias gerais em curso. A clara opção do eleitorado viria a repetir-se em 1975 o que causou grande mal-estar em Savimbi e nos seus seguidores.
A nova Comissão Directiva, foi por mim presidida, tendo como vice-presidente José Augusto Resende
Estes repetidos resultados explicam-se com o conhecimento adquirido pelos trabalhadores, a maioria dos eleitores, dos componentes das duas listas, secundarizando deste modo as suas preferências tribais e políticas. De resto, o desempenho das duas Comissões Directivas eleitas, promotoras da humanização dos quadros de pessoal técnico e auxiliar, eliminando a discriminação racial praticada na Função Publica da colónia, e remunerando em função das capacidades profissionais de cada um, independentemente da sua etnia, movimento político ou religião, decisões que, indubitavelmente, terão justificado a repetida escolha feita pela maioria dos eleitores trabalhadores
Entretanto, a coexistência entre as três organizações político-militares, MPLA, FNLA e UNITA rompera-se, a guerra civil eclodiu e implantou-se em todo o território. Neste contexto belicista, a 9 de Agôsto de 1975, a UNITA apoderou-se do Huambo e expulsou ou assassinou os dirigentes e alguns simpatizantes do MPLA.
Perante esta realidade e a atitude hostil de Savimbi manifestada através das manobras atrás referidas, em certa altura visando-me pessoalmente com provocações indirectas ao «tipo dos olhos azuis», decidimos, minha mulher e eu, por uma questão de segurança, encarar o abandono de Nova Lisboa com os nossos filhos.
De imediato, deslocámo-nos ao Lobito, onde fretámos uma avioneta e com as duas filhas mais velhas, Alexandra e Paula fui eu para Luanda, e elas seguiram para Portugal na companhia do Engº Passos de Carvalho e família, enquanto que minha mulher, Mª Amália, regressava de carro a Nova Lisboa com os nossos filhos Pedro e Catarina, com a companhia do meu amigo e futuro colega Carlos Soares da Silva e, noutra viatura, o meu colega e grande amigo Salvador Ribeiro. Posteriormente, retornei, por via aérea, a Nova Lisboa
Aproveitando por mero e feliz acaso, em dias sucessivos, aviões da Força Aérea Portuguesa que transportava militares da UNITA expulsos das regiões controladas pelo MPLA e no regresso deram boleia a quem pretendia abandonar a cidade, Assim viajaram para Luanda a minha mulher e os nossos dois filhos mais novos, Pedro e Catarina, acompanhadas pelo meu colega e amigo José Carlos Veiga Pinto e família.
No dia seguinte, foi a minha vez de partir, aproveitando ainda um avião da Força Aérea, não sem antes ter verificado, com emoção, que um técnico de laboratório da Faculdade, activista e dirigente da UNITA, depois de olhar para mim, fizera por ignorar-me pois, se assim não fosse, teria de dar-me ordem de detenção.
Ao partirmos de Nova Lisboa, trouxemos a roupa que tínhamos vestida, dois bonecos dos miúdos e um pequeno leitor de cassetes-áudio Sony que eu tinha comprado em Luanda semanas antes. Esta abrupta decisão pressupunha o nosso regresso, num futuro próximo, na esperança de que a paz voltasse brevemente ao Huambo e ao país. Infelizmente a esperança desvaneceu-se e perdemos todos os nossos haveres, incluindo obras-de-arte, literárias e musicais de grande valor estimativo para nós. Posteriormente, ficámos a saber que o acervo referido foi tomado por um dirigente da UNITA, no próprio dia da minha saída de Nova Lisboa.
A 14 de Setembro partimos para a Europa com a incumbência do Senado Universitário e do MPLA que então governava o país, para que eu contactasse as entidades homólogas da nossa Faculdade, em Portugal e no estrangeiro, solicitando o apoio à nossa Universidade, em especial à Faculdade de Medicina Veterinária de Nova Lisboa.
Assim, trouxe comigo um volumoso bilhete da TAAG (Transportes Aéreos de Angola) que deveria permitir-me viajar para vários países europeus, antes do nosso regresso a Angola, previsto para Outubro/Novembro seguintes.
 Entrementes, a situação deteriorou-se em Angola e considerava-se eminente a invasão do território, quer pelo norte, a partir do Zaire, por forças militares regulares deste país, comandado por Joseph Mobutu, assessorado por mercenários portugueses, quer a partir do sul pela UNITA sustentada pelo exército sulafricano do apartheid, cujo objectivo conjunto, das duas forças invasoras, era a entrada em Luanda, a expulsão do MPLA e a tomada de poder, com a limpeza dos dirigentes e simpatizantes desse movimento de libertação.
Nesta preocupante perspectiva, decidi não fazer as deslocações programadas a vários países europeus e protelar a viagem de regresso a Angola, até que a situação se aclarasse, perante a instabilidade e a insegurança nele reinantes, tomando como primeira prioridade a segurança dos nossos filhos.
Até à data da declaração unilateral da independência pelo Presidente do MPLA, dr. Agostinho Neto, no dia 11 de Novembro de 1975, a eminência da invasão referida era um facto praticamente adquirido mas, a intervenção militar maciça de Cuba, em apoio às FAPLA, susteve-a e infligiu, a partir desse dia, pesadas derrotas aos invasores que, na retirada em fuga, destruíram tudo quanto encontraram pelo caminho, infraestruturas, estradas, edifícios, explorações agrícolas e pecuárias, etc., etc., numa acção terrivelmente destruidora dos sul-africanos.
O nosso não regresso antes do dia da independência foi interpretado de má fé pelos então dirigentes da Faculdade, alguns deles meus alunos, como um acto de traição ao país, fazendo tábua rasa de todo o meu passado como investigador, docente e como angolano, antes e depois de 25 de Abril de 1974 e posteriormente como dirigente, tendo conseguido convencer disso o Ministro da Educação, Lopo do Nascimento, o qual exarou um despacho impeditivo do meu regresso a Angola, uma cópia que está em meu poder, tal como a correspondência trocada sobre este doloroso assunto.
Não é despiciendo deixar registado que nenhum daqueles dirigentes, acometidos de ultra revolucionarite, que me apodaram malevolamente de traidor, permaneceu em Angola.
Todavia, ainda aguardámos até 1980, a revisão da injustificada e injusta decisão, ano em que acabámos por desistir de regressar, optando por permanecer em Portugal.
Depois de termos decidido assim, o governo português através, da Direcção Geral de Investigação e Protecção dos Recursos Vivos e do Ambiente Aquático e pelo seu Director Geral, dr. Mário Ruivo, perante o meu currículo em investigação das pescas em Angola (Lobito, na Biopescas, da J.I.C.U,) por indicação da dra. Maria de Lurdes Matafome minha colega e amiga e com base no objectivo de promover o desenvolvimento da aquacultura no país, proporcionou-me uma bolsa de estudo no estrangeiro, com vista a uma formação sobre ictiopatologia, tema inexistente nos curricula dos Cursos de Medicina Veterinária portugueses, a base essencial para a prevenção das doenças de peixes em produção animal aquática. Tal desiderato, consumou-se durante o ano de 1977, em França, no Laboratoire d’Ichthyopathologie do INRA, Institut National de la Reherche Agronomique.
Salvo casos muito pontuais de agressividade em relação aos denominados retornados (que eu não era, nem sou) exploradores dos «indígenas», com os nossos quatro filhos reconstruimos a vida familiar, escolar (uma doutorada, uma empresária, um informático director e uma licenciada) e profissional em Portugal, partindo praticamente do zero, em termos materiais e com algumas dificuldades vencidas.
A actividade profissional, de minha mulher foi desenvolvida como técnica de laboratório de histopatologia, de apoio à ictiopatologia e à patologia de moluscos e maneio e produção de zooplâncton, no INIP/IPIMAR e, ainda empenhada actividade sindical.
  No meu currículo consta toda a minha actividade profissional em Portugal como investigador e professor convidado de 4 universidades (Porto, Algarve, Évora e Coimbra), bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, comissário da EXPO 98, representando o Ministério da Agricultura e Pescas e, a nível internacional, como delegado nacional no ICES, International Commission for the Exploration of the Seas, na FAO, Food and Agriculture Organization e, ainda, consultor da JNICT (Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, hoje FCT, Fundação para a Ciência e Tecnologia), da CEE/UE, da R.A. dos Açôres, da Republica de Cabo Verde e da empresa dinamarquesa DANIDA.
Em Agosto de 1998 aposentámo-nos da Função Pública, embora eu tenha continuado a dar minha colaboração docente à Universidade de Évora, até 2017, quando tomei a decisão de interrompê-la, depois de convencer a directora do Departamento de Paisagismo, Ambiente e Planeamento, Profª Maria Ilhéu, com base no progressivo afastamento do meu meio profissional específico e consequente inevitável desactualização de contactos e conhecimentos.
Concluindo, o volumoso bilhete da TAAG que dá o título a esta crónica, mantém-se, em meu poder, intacto, guardado como relíquia, mas permaneci e permaneço, apegado ao meu país de origem que continuo a acompanhar e defender, tanto quanto posso.