segunda-feira, 28 de outubro de 2019


NAQUELE TEMPO, ERA MESMO ASSIM

Pertenço a um grupo de nascidos em Angola, com mais de 65 anos de idade, isto é, adultos no 25 de Abril de 1974, ali criados numa sociedade desigual, social e economicamente, constituída por duas comunidades separadas por condições de vida extremamente diferentes, uma minoritária, predominantemente de brancos de origem europeia, habitando bairros estruturados, mais ou menos confortáveis e a outra, a larga maioria, de negros e alguns mestiços, sobrevivendo em musseques, aldeias de casebres de pau-a-pique e adobe, sem saneamento básico nem água canalisada, excepto uma bica de água nalgumas delas, na periferia das cidades e vilas, em estado de degradante subdesenvolvimento.
Era mesmo assim, até à década de 60 do século XX.
Ainda não me referi a racismo, porque tal pressupõe a existência de várias raças, quando ficou demonstrado cientificamente que há apenas raça humana que foi-se adaptando, ao longo de séculos, milénios, às diversas condições ambientais, dos locais onde se instalou, em diferentes regiões do globo, o que pode explicar a variabilidade da coloração da sua pele, mais ou menos escura, com tonalidades diversas, embora os chamados caucasianos, designados brancos, tenham coloração da pele rosada, avermelhada, amarelada, portanto não branca.
Contudo, apesar da definição actual de uma única raça humana, limitante da definição de racismo, tal não significa que não existisse, em Angola, discriminação dos homens e mulheres negros, votados a um ostracismo inegável, nas condições socio-económicas miseráveis, atrás referidas, com implicações negativas de toda a ordem, nomeadamente na sua saúde e bem estar.
Salvo uma pequena minoria de negros que eram trabalhadores sem qualificação, empregados do Estado e do Comércio (contínuos, auxiliares de limpeza, empregados de mesa, ardinas, cauteleiros, etc.), elas e eles eram, na sua maioria, serviçais, cozinheiros, criados e lavadeiras, nas casas de brancos e de alguns mestiços, sem direitos de cidadania, com baixos salários e nenhuma protecção social. Vem a propósito referir que a chamada maciça de portugueses da «metrópole», a maioria deles sem qualificação profissional, teve como resultado a competição nos empregos mais baixos (acima citados) com os negros, ultrapassando-os e lançando-os no desemprego, porque o ser branco, mesmo analfabeto, conferia-lhe um estatuto de superioridade.
Assim, era bem evidente a supremacia dos brancos e também de alguns mestiços, filhos daqueles, constituídos numa pequena burguesia, sobre os negros, considerando-se normal a ostensiva sobranceria, com o tratamento por tu para crianças, novos e velhos, alimentação escassa e deficiente, não se tendo ou não querendo ter, consciência da clara segregação social, uma dolorosa e indesmentível realidade. O castigo físico, ou o corte no parco salário, como reprimenda à mais pequena prevaricação ou desleixo, era comum, ou então, a queixa à autoridade administrativa que punia fisicamente ou pelo uso de palmatória/chicote e, eventualmente, trabalho forçado. Outro aspecto do abuso exercido pelo estado, eram os contratos de trabalho, estabelecidos entre a autoridade administrativa, os angariadores e as empresas, sem conhecimento nem consentimento dos trabalhadores contratados, que podiam ser deslocados para longe da família e do seu meio, auferindo montantes irrisórios, muitas vezes perdidos nas cantinas dos empregadores, ao ponto de regressarem a casa, (quando regressavam), com um cambriquito (cobertor) e parcos tostões.
A aparente passividade dos negros perante o abismo socio-económico entre as duas comunidades e a ausência de direitos de cidadania, era condicionada quer pela submissão ancestral à autoridade do colono, como pela repressão policial e pidesca, sobre eles exercida, foi-se esbatendo nas grandes cidades, com a tomada de consciência dos direitos humanos, determinante da crescente revolta, terreno fértil para a intervenção progressiva dos defensores daqueles direitos, da sua emancipação, reivindicação de autodeterminação e independência. Foi assim que, em 1961, se deu a sublevação, apesar de violentamente reprimida, primeiro em Janeiro, na Baixa do Cassange, e depois em Luanda em Fevereiro, que se  iniciou em Angola a Guerra Colonial.
A partir de 1961, tarde e a más horas, Salazar viu-se forçado a mudar a sua política colonial, com a patética frase «para Angola e em força», decretando a mobilização de milhares de soldados e, afectando à acção, vultuosos recursos militares e financeiros. Por outro lado, deu-se início a alterações em toda a governação, tendo-se investido nas diversas actividades económicas, comerciais e industriais, antes bloqueadas, para protecção às empresas majestáticas da chamada «metrópole», persistindo o subdesenvolvimento da colónia. Do ponto de vista social, a educação e o ensino passaram a constituir prioridades e as relações sociais entre brancos e negros foram objecto de medidas cosméticas que se podem consubstanciar no chamado «sêlo de povoamento», onde estavam estampados, um negro, um mestiço e um branco… De facto, tarde demais, tudo melhorou em Angola em resultado da eclosão da guerra, o desenvolvimento da colónia que passou a chamar-se província ultramarina, foi uma realidade indesmentível, reduzindo-se a discriminação social, mas a semente reivindicativa da autodeterminação e independência de Angola, pelos movimentos de libertação, tornou-se imparável.
Não é mero detalhe histórico a referência aos milhares de mortos e estropiados, portugueses e angolanos e famílias destroçadas, porque Salazar se recusou obstinadamente a discutir com os movimentos de libertação, a pedido destes nos anos 40/50 do século XX, para a preparação em devido tempo e nas condições adequadas, da autodeterminação e ulterior independência, o que poderia ter evitado que a descolonização de Angola causasse tanto sofrimento a centenas de milhar de portugueses.
Depois desta resenha, onde procurei evidenciar a discriminação social dos negros em Angola, houve manifestações de intolerância de brancos para negros e progressivamente, como sua consequência, de negros para brancos. Ainda hoje, há quem rejeite que em Angola tivesse existido a discriminação social descrita, não aceitando assumi-lo, quando se trata de uma realidade indesmentível. Não está em causa exigir-se sentimentos de culpa, mas sim o reconhecimento da situação discriminatória, o que revelaria humildade e nobreza perante a História que não se reescreve.
Concluindo, trago uma lamentável ocorrência verificada após as eleições legislativas no passado dia 6, através de uma carta divulgada na net, invectivando Jociane Katar Moreira, hoje deputada à Assembleia da Republica, cujo conteúdo é uma manifestação de intolerância primária por ela ter sido eleita, quando  se faz referência a uma mulher estrangeira e ela é cidadã portuguesa, de côr (qual côr? porquê esta referência?), uma designação da gíria racista, e acabando por acusá-la de racista, ingrata, desrespeitosa e sem vergonha, sem a imperativa fundamentação, relevando por fim a sua gaguez, como se se tratasse de uma inferioridade, quando ela revelou coragem, ao aceitar o desafio, de se tornar porta-voz de um partido, o Livre, que a escolheu.