segunda-feira, 1 de abril de 2013


O BILHETE DA TAAG

Ao chegar ao Laboratório[1] na manhã de 25 de Abril de 1974, circulavam insistentes rumores sobre a eclosão de um golpe de estado em Portugal, desconhecendo-se quais os seus mentores, temendo-se que se tratasse de uma iniciativa da ultra direita civil e militar, descontente com a ambiguidade e a proverbial indefinição do primeiro-ministro Marcello Caetano.

Entretanto, fui recebendo vários telefonemas, entre os quais de minha mulher, todos eles relacionados com o mesmo sobressalto até que, pela rádio, ficámos a saber que não se confirmava o mau agoiro admitido e exultámos então com o cariz progressista do acto revolucionário eclodido enquanto repetidamente nos beliscávamos, ainda temendo uma reviravolta.

Perante o inesperado, mas há muito desejado, acontecimento, todo o planeamento de vida ficou posto em causa, pois que a prioridade passou a ser a democratização do país, de todas as suas instituições, com repercussão óbvia nas colónias, nomeadamente em Angola, a minha terra e dos nossos filhos.

Antevia-se o fim do receio do ouvido amplificador dos bufos, da hipocrisia do selo de povoamento e da província ultramarina, do ridículo Portugal do Minho a Timor, o culminar da libertação dos povos português, do angolano e das outras colónias.

O planeado doutoramento ficou adiado sine dia, outros valores tornaram-se prioritários.

Assim, de imediato, regressei à minha Faculdade para saborear in loco a liberdade e dar o meu contributo nas imperativas transformações para a já referida democratização da nossa Universidade, começando pela eleição universal da Comissão Directiva pelos trabalhadores, estudantes e docentes.

Importa salientar a importância imediata dos movimentos de libertação, FNLA, UNITA e MPLA, avultando a grande implantação sociológica regional da UNITA, por razões tribais e religiosas.

Duas listas foram então constituídas e apresentaram-se a sufrágio, evidenciando-se desde logo, na sua constituição, as simpatias pelos movimentos de libertação. Uma das listas, a A, era composta por apaniguados dos dois primeiros e a outra, a B, sem conotação política expressa, embora integrando simpatizantes do MPLA.

O pleito eleitoral contrariou as previsões que apontavam para uma vitória expressiva da lista A, já que saíu vencedora a lista B, resultado que frustrou as hostes da UNITA, particularmente o seu chefe Jonas Savimbi que, de seguida, determinou a intimidação de toda a gente que o levou a invadir assembleias gerais em curso. A opção do eleitorado repetiu-se em 1975 o que causou grande mal-estar em Savimbi e seus apaniguados.

Estes repetidos resultados explicam-se com o conhecimento adquirido pelos trabalhadores, a maioria dos eleitores, dos componentes das duas listas, ultrapassando deste modo as suas preferências tribais. De resto, o desempenho da Comissão Directiva eleita que promoveu a humanização dos seus quadros de pessoal técnico e auxiliar, eliminando a discriminação racial vigente e remunerando em função das capacidades profissionais de cada um, independentemente da sua etnia, justificou a escolha feita pelos eleitores

Entretanto, a coexistência entre as três organizações político-militares, MPLA, FNLA e UNITA, rompera-se, a guerra estalou e implantou-se em todo o território. Neste contexto, a 9 de Agôsto de 1975, a UNITA apoderou-se do Huambo e expulsou ou assassinou os representantes e simpatizantes do MPLA.

Perante esta realidade e a atitude hostil de Savimbi manifestada através das manobras atrás referidas, decidimos, minha mulher e eu, abandonar Nova Lisboa com os nossos filhos, aproveitando miraculosamente, em dias sucessivos, aviões da Força Aérea Portuguesa que transportara militares da UNITA expulsos das regiões controladas pelo MPLA, primeiramente minha mulher e os nossos dois filhos mais novos, já que as duas mais velhas tínhamo-las levado, dias antes, ao Lobito de carro e depois a Luanda, em avioneta fretada para o efeito, que seguiram para Portugal na companhia de uma família amiga. No dia seguinte, foi a minha vez de partir. No aeroporto, verifiquei com emoção, que um funcionário da nossa Faculdade, activista e dirigente da UNITA, depois de olhar para mim fizera por ignorar-me pois, se assim não fizesse, deveria dar-me ordem de detenção.

Ao partirmos de Nova Lisboa, trouxemos apenas alguma roupa, as jóias, alguns brinquedos dos miúdos e (?) um pequeno leitor de cassetes-áudio SONY que tinha comprado em Luanda semanas antes. Esta abrupta decisão pressupunha o nosso regresso, num futuro próximo, na esperança de que a paz voltasse um dia ao Huambo e ao país.

A 14 de Setembro partimos, de férias, para Portugal, embora com a incumbência do Senado Universitário e do MPLA que então governava o país, de contactar em Portugal e no estrangeiro, solicitando o apoio à nossa Universidade, em especial à Faculdade de Ciências Veterinárias de Nova Lisboa.

Assim, vim munido de um volumoso bilhete da TAAG (Transportes Aéreos de Angola) o que me permitiria viajar para vários países europeus, até ao nosso regresso a Angola, previsto para Outubro/Novembro seguintes, depois de gozarmos o período de férias estabelecido.

Entrementes a situação deteriorava-se em Angola e considerava-se eminente a invasão do território  quer no norte, a partir do Zaire, por forças militares regulares deste país, comandado por Mobutu, assessoradas por mercenários portugueses, quer a partir do sul pela UNITA apoiada pelo exército da África do Sul do apartheid, cujo objectivo conjunto era a entrada em Luanda, a expulsão do MPLA e a tomada de poder.

Nesta preocupante perspectiva, decidi protelar a programada viagem até que a situação se aclarasse. Posteriormente, também adiámos o regresso ao país, perante a instabilidade e a insegurança nele reinantes.

Até à data da declaração unilateral da independência pelo Presidente do MPLA, Agostinho Neto, no dia 11 de Novembro de 1975, a eminência da invasão referida era um facto praticamente consumado mas, a intervenção militar maciça de Cuba, em apoio às FAPLA, susteve-a e infligiu, a partir desse dia, pesadas derrotas aos invasores que, na precipitação da retirada, destruíram tudo quanto encontraram pelo caminho, infraestruturas, estradas, edifícios, explorações agrícolas e pecuárias, etc., etc., numa acção particularmente destruidora dos sul-africanos.

A segurança dos nossos filhos e a sua subsistência foram as prioritárias razões do não regresso antes do dia da independência o que foi interpretado, pelos dirigentes de então da Faculdade, um acto de traição ao país, interpretação que obstaculizou o nosso desejo de retorno.

Vem a propósito dizer que nenhum daqueles dirigentes, então ultra-revolucionários, permaneceu em Angola.

Com os nossos quatro filhos reconstruimos a vida familiar, escolar e profissional em Portugal partindo, praticamente do zero, em termos materiais.

Concluindo, o volumoso bilhete da TAAG mantém-se em nosso poder, intacto.

 

 

 



[1] Estágio em Hematologia e Imunologia no Laboratório de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina de Luanda, dirigido pelo Prof. Gil da Costa, preparatório da tèse de doutoramento sobre Hematologia de Bovinos, na École Vétèrinaire de Alfort, França.