O
BILHETE DA TAAG
Ao chegar ao Laboratório[1] na manhã de 25 de Abril de
1974, circulavam insistentes rumores sobre a eclosão de um golpe de estado em
Portugal, desconhecendo-se quais os seus mentores, temendo-se que se tratasse
de uma iniciativa da ultra direita civil e militar, descontente com a
ambiguidade e a proverbial indefinição do primeiro-ministro Marcello Caetano.
Entretanto, fui recebendo vários
telefonemas, entre os quais de minha mulher, todos eles relacionados com o
mesmo sobressalto até que, pela rádio, ficámos a saber que não se confirmava o
mau agoiro admitido e exultámos então com o cariz progressista do acto
revolucionário eclodido enquanto repetidamente nos beliscávamos, ainda temendo
uma reviravolta.
Perante o inesperado, mas há muito
desejado, acontecimento, todo o planeamento de vida ficou posto em causa, pois
que a prioridade passou a ser a democratização do país, de todas as suas
instituições, com repercussão óbvia nas colónias, nomeadamente em Angola, a
minha terra e dos nossos filhos.
Antevia-se o fim do receio do ouvido
amplificador dos bufos, da hipocrisia do selo de povoamento e da província
ultramarina, do ridículo Portugal do Minho a Timor, o culminar da libertação
dos povos português, do angolano e das outras colónias.
O planeado doutoramento ficou adiado sine dia, outros valores tornaram-se prioritários.
Assim, de imediato, regressei à minha
Faculdade para saborear in loco a
liberdade e dar o meu contributo nas imperativas transformações para a já
referida democratização da nossa Universidade, começando pela eleição universal
da Comissão Directiva pelos trabalhadores, estudantes e docentes.
Importa salientar a importância
imediata dos movimentos de libertação, FNLA, UNITA e MPLA, avultando a grande
implantação sociológica regional da UNITA, por razões tribais e religiosas.
Duas listas foram então constituídas e
apresentaram-se a sufrágio, evidenciando-se desde logo, na sua constituição, as
simpatias pelos movimentos de libertação. Uma das listas, a A, era composta por
apaniguados dos dois primeiros e a outra, a B, sem conotação política expressa,
embora integrando simpatizantes do MPLA.
O pleito eleitoral contrariou as previsões
que apontavam para uma vitória expressiva da lista A, já que saíu vencedora a
lista B, resultado que frustrou as hostes da UNITA, particularmente o seu chefe
Jonas Savimbi que, de seguida, determinou a intimidação de toda a gente que o
levou a invadir assembleias gerais em curso. A opção do eleitorado repetiu-se
em 1975 o que causou grande mal-estar em Savimbi e seus apaniguados.
Estes repetidos resultados explicam-se
com o conhecimento adquirido pelos trabalhadores, a maioria dos eleitores, dos
componentes das duas listas, ultrapassando deste modo as suas preferências
tribais. De resto, o desempenho da Comissão Directiva eleita que promoveu a
humanização dos seus quadros de pessoal técnico e auxiliar, eliminando a discriminação
racial vigente e remunerando em função das capacidades profissionais de cada um,
independentemente da sua etnia, justificou a escolha feita pelos eleitores
Entretanto, a coexistência entre as três
organizações político-militares, MPLA, FNLA e UNITA, rompera-se, a guerra
estalou e implantou-se em todo o território. Neste contexto, a 9 de Agôsto de
1975, a UNITA apoderou-se do Huambo e expulsou ou assassinou os representantes
e simpatizantes do MPLA.
Perante esta realidade e a atitude
hostil de Savimbi manifestada através das manobras atrás referidas, decidimos,
minha mulher e eu, abandonar Nova Lisboa com os nossos filhos, aproveitando
miraculosamente, em dias sucessivos, aviões da Força Aérea Portuguesa que
transportara militares da UNITA expulsos das regiões controladas pelo MPLA,
primeiramente minha mulher e os nossos dois filhos mais novos, já que as duas
mais velhas tínhamo-las levado, dias antes, ao Lobito de carro e depois a
Luanda, em avioneta fretada para o efeito, que seguiram para Portugal na
companhia de uma família amiga. No dia seguinte, foi a minha vez de partir. No
aeroporto, verifiquei com emoção, que um funcionário da nossa Faculdade,
activista e dirigente da UNITA, depois de olhar para mim fizera por ignorar-me
pois, se assim não fizesse, deveria dar-me ordem de detenção.
Ao partirmos de Nova Lisboa, trouxemos
apenas alguma roupa, as jóias, alguns brinquedos dos miúdos e (?) um pequeno leitor
de cassetes-áudio SONY que tinha comprado em Luanda semanas antes. Esta abrupta
decisão pressupunha o nosso regresso, num futuro próximo, na esperança de que a
paz voltasse um dia ao Huambo e ao país.
A 14 de Setembro partimos, de férias,
para Portugal, embora com a incumbência do Senado Universitário e do MPLA que
então governava o país, de contactar em Portugal e no estrangeiro, solicitando o apoio
à nossa Universidade, em especial à Faculdade de Ciências Veterinárias de Nova
Lisboa.
Assim, vim munido de um volumoso
bilhete da TAAG (Transportes Aéreos de Angola) o que me permitiria viajar para
vários países europeus, até ao nosso regresso a Angola, previsto para
Outubro/Novembro seguintes, depois de gozarmos o período de férias
estabelecido.
Entrementes a situação deteriorava-se
em Angola e considerava-se eminente a invasão do território quer no norte, a partir
do Zaire, por forças militares regulares deste país, comandado por Mobutu,
assessoradas por mercenários portugueses, quer a partir do sul pela UNITA
apoiada pelo exército da África do Sul do apartheid, cujo objectivo conjunto
era a entrada em Luanda, a expulsão do MPLA e a tomada de poder.
Nesta preocupante perspectiva, decidi
protelar a programada viagem até que a situação se aclarasse. Posteriormente, também
adiámos o regresso ao país, perante a instabilidade e a insegurança nele reinantes.
Até à data da declaração unilateral da
independência pelo Presidente do MPLA, Agostinho Neto, no dia 11 de Novembro de
1975, a eminência da invasão referida era um facto praticamente consumado mas,
a intervenção militar maciça de Cuba, em apoio às FAPLA, susteve-a e infligiu,
a partir desse dia, pesadas derrotas aos invasores que, na precipitação da retirada,
destruíram tudo quanto encontraram pelo caminho, infraestruturas, estradas, edifícios,
explorações agrícolas e pecuárias, etc., etc., numa acção particularmente destruidora
dos sul-africanos.
A segurança dos nossos filhos e a sua
subsistência foram as prioritárias razões do não regresso antes do dia da
independência o que foi interpretado, pelos dirigentes de então da Faculdade,
um acto de traição ao país, interpretação que obstaculizou o nosso desejo de
retorno.
Vem a propósito dizer que nenhum
daqueles dirigentes, então ultra-revolucionários, permaneceu em Angola.
Com os nossos quatro filhos reconstruimos
a vida familiar, escolar e profissional em Portugal partindo, praticamente do
zero, em termos materiais.
Concluindo, o volumoso bilhete da TAAG
mantém-se em nosso poder, intacto.
[1] Estágio
em Hematologia e Imunologia no Laboratório de Anatomia Patológica da Faculdade
de Medicina de Luanda, dirigido pelo Prof. Gil da Costa, preparatório da tèse
de doutoramento sobre Hematologia de Bovinos, na École Vétèrinaire de Alfort,
França.