O BILHETE DA TAAG
Ao chegar ao
Laboratório de Hematologia do Hospital Universitário de S.Paulo, onde concluía
um estágio de preparação para doutoramento, na manhã de 25 de Abril de 1974,
circulavam insistentes rumores sobre a eclosão de um golpe de estado em
Portugal, desconhecendo-se quais os seus mentores, temendo-se que se tratasse
de uma iniciativa da ultra direita civil e militar, descontentes com a
ambiguidade e a proverbial indefinição do primeiro-ministro Marcello Caetano.
Entretanto,
fui recebendo vários telefonemas, entre os quais de minha mulher, todos eles
relacionados com o mesmo sobressalto até que, pela rádio, ficámos a saber que
não se confirmava o mau agoiro admitido e exultámos então com o cariz
progressista do acto revolucionário eclodido, enquanto que nos beliscávamos
repetidamente, temendo ainda uma eventual reviravolta.
Perante o
inesperado, mas há muito desejado acontecimento, todo o planeamento de vida futura
ficou posto em causa, pois que a prioridade passou a ser o contributo para a
democratização do país, de todas as suas instituições, com repercussão óbvia
nas colónias, nomeadamente em Angola, a minha terra e dos nossos filhos.
Antevia-se o
fim do receio do ouvido amplificador dos bufos, da hipocrisia do selo de
povoamento e da província ultramarina, do ridículo Portugal do Minho a Timor, e
mais que tudo a perspectiva de libertação dos povos português, angolano e das
outras colónias, até então negada pela doentia obstinação de Salazar que
rejeitava os ventos da História com o fim ao colonialismo.
Assim, de
imediato, regressei à minha Faculdade para saborear in loco a liberdade e integrar-me nas imperativas transformações
para a já referida democratização da nossa Universidade,
O planeado
doutoramento, sobre hematologia de bovinos, com um estágio preparatório sob a
direcção do Prof. Gil da Costa da Faculdade de Medicina de Luanda, no Hospital
Universitário de S.Paulo, que iria ser prosseguido na École Vetérinaire
d’Alfort, em França, sob a orientação do Prof. Petit, ficou adiado sine diae, porque considerei
prioritários os objectivos atrás referidos. Pelas mesmas razões foi igualmente
suspenso o estágio sobre técnicas de electroforèse aplicáveis em hematologia
bovina, nesta mesma École, destinado a minha mulher, Mª Amália.
Desde logo
decidimos, o corpo docente da Faculdade, preparar a realização da eleição
universal da Comissão Directiva, pelos trabalhadores, estudantes e docentes.
Neste
propósito, importa salientar a importância dos
movimentos de libertação, FNLA, UNITA e MPLA, avultando a grande implantação
sociológica regional da UNITA, por razões tribais e religiosas.
Duas listas
foram então constituídas e apresentadas a sufrágio, evidenciando-se desde logo,
na sua constituição, as simpatias pelos movimentos de libertação. Uma das
listas, a A, era composta por apoiantes dos dois primeiros, UNITA e FNLA, e a
outra, a B, sem conotação política expressa, embora integrando simpatizantes do
MPLA.
Desta
eleição resultou a surpreendente vitória da Lista B para a constituição da
Comissão Directiva da Faculdade de Medicina Veterinária do Huambo, tendo como
presidente o Prof. Penha Gonçalves e eu próprio como vice-presidente, os dois
primeiros nomes da lista concorrente, representantes dos docentes.
Assim, o
pleito eleitoral contrariou as previsões que apontavam para uma vitória
esmagadora da lista A, quando saíu vencedora a lista B, resultado que frustrou
as hostes da UNITA, particularmente o seu chefe Jonas Malheiro Savimbi que, de
seguida, instigou a prática de atitudes de intimidação de toda a gente,
levando-o a invadir e interromper assembleias gerais em curso. A clara opção do
eleitorado viria a repetir-se em 1975 o que causou grande mal-estar em Savimbi
e nos seus seguidores.
A nova
Comissão Directiva, foi por mim presidida, tendo como vice-presidente José
Augusto Resende
Estes repetidos
resultados explicam-se com o conhecimento adquirido pelos trabalhadores, a
maioria dos eleitores, dos componentes das duas listas, secundarizando deste
modo as suas preferências tribais e políticas. De resto, o desempenho das duas
Comissões Directivas eleitas, promotoras da humanização dos quadros de pessoal
técnico e auxiliar, eliminando a discriminação racial praticada na Função
Publica da colónia, e remunerando em função das capacidades profissionais de
cada um, independentemente da sua etnia, movimento político ou religião, decisões
que, indubitavelmente, terão justificado a repetida escolha feita pela maioria
dos eleitores trabalhadores
Entretanto,
a coexistência entre as três organizações político-militares, MPLA, FNLA e
UNITA rompera-se, a guerra civil eclodiu e implantou-se em todo o território.
Neste contexto belicista, a 9 de Agôsto de 1975, a UNITA apoderou-se do Huambo
e expulsou ou assassinou os dirigentes e alguns simpatizantes do MPLA.
Perante esta
realidade e a atitude hostil de Savimbi manifestada através das manobras atrás
referidas, em certa altura visando-me pessoalmente com provocações indirectas
ao «tipo dos olhos azuis», decidimos, minha mulher e eu, por uma questão de
segurança, encarar o abandono de Nova Lisboa com os nossos filhos.
De imediato,
deslocámo-nos ao Lobito, onde fretámos uma avioneta e com as duas filhas mais
velhas, Alexandra e Paula fui eu para Luanda, e elas seguiram para Portugal na
companhia do Engº Passos de Carvalho e família, enquanto que minha mulher, Mª
Amália, regressava de carro a Nova Lisboa com os nossos filhos Pedro e
Catarina, com a companhia do meu amigo e futuro colega Carlos Soares da Silva
e, noutra viatura, o meu colega e grande amigo Salvador Ribeiro.
Posteriormente, retornei, por via aérea, a Nova Lisboa
Aproveitando
por mero e feliz acaso, em dias sucessivos, aviões da Força Aérea Portuguesa
que transportava militares da UNITA expulsos das regiões controladas pelo MPLA
e no regresso deram boleia a quem pretendia abandonar a cidade, Assim viajaram
para Luanda a minha mulher e os nossos dois filhos mais novos, Pedro e
Catarina, acompanhadas pelo meu colega e amigo José Carlos Veiga Pinto e
família.
No dia
seguinte, foi a minha vez de partir, aproveitando ainda um avião da Força Aérea,
não sem antes ter verificado, com emoção, que um técnico de laboratório da
Faculdade, activista e dirigente da UNITA, depois de olhar para mim, fizera por
ignorar-me pois, se assim não fosse, teria de dar-me ordem de detenção.
Ao partirmos
de Nova Lisboa, trouxemos a roupa que tínhamos vestida, dois bonecos dos miúdos
e um pequeno leitor de cassetes-áudio Sony que eu tinha comprado em Luanda
semanas antes. Esta abrupta decisão pressupunha o nosso regresso, num futuro
próximo, na esperança de que a paz voltasse brevemente ao Huambo e ao país. Infelizmente
a esperança desvaneceu-se e perdemos todos os nossos haveres, incluindo
obras-de-arte, literárias e musicais de grande valor estimativo para nós.
Posteriormente, ficámos a saber que o acervo referido foi tomado por um dirigente
da UNITA, no próprio dia da minha saída de Nova Lisboa.
A 14 de
Setembro partimos para a Europa com a incumbência do Senado Universitário e do
MPLA que então governava o país, para que eu contactasse as entidades homólogas
da nossa Faculdade, em Portugal e no estrangeiro, solicitando o apoio à
nossa Universidade, em especial à Faculdade de Medicina Veterinária de Nova
Lisboa.
Assim,
trouxe comigo um volumoso bilhete da TAAG (Transportes Aéreos de Angola) que deveria
permitir-me viajar para vários países europeus, antes do nosso regresso a
Angola, previsto para Outubro/Novembro seguintes.
Entrementes, a situação deteriorou-se em
Angola e considerava-se eminente a invasão do território, quer pelo norte,
a partir do Zaire, por forças militares regulares deste país, comandado por Joseph
Mobutu, assessorado por mercenários portugueses, quer a partir do sul pela
UNITA sustentada pelo exército sulafricano do apartheid, cujo objectivo
conjunto, das duas forças invasoras, era a entrada em Luanda, a expulsão do
MPLA e a tomada de poder, com a limpeza dos dirigentes e simpatizantes desse
movimento de libertação.
Nesta
preocupante perspectiva, decidi não fazer as deslocações programadas a vários
países europeus e protelar a viagem de regresso a Angola, até que a situação se
aclarasse, perante a instabilidade e a insegurança nele reinantes, tomando como
primeira prioridade a segurança dos nossos filhos.
Até à data
da declaração unilateral da independência pelo Presidente do MPLA, dr. Agostinho
Neto, no dia 11 de Novembro de 1975, a eminência da invasão referida era um
facto praticamente adquirido mas, a intervenção militar maciça de Cuba, em
apoio às FAPLA, susteve-a e infligiu, a partir desse dia, pesadas derrotas aos
invasores que, na retirada em fuga, destruíram tudo quanto encontraram pelo
caminho, infraestruturas, estradas, edifícios, explorações agrícolas e
pecuárias, etc., etc., numa acção terrivelmente destruidora dos sul-africanos.
O nosso não
regresso antes do dia da independência foi interpretado de má fé pelos então
dirigentes da Faculdade, alguns deles meus alunos, como um acto de traição ao
país, fazendo tábua rasa de todo o meu passado como investigador, docente e
como angolano, antes e depois de 25 de Abril de 1974 e posteriormente como
dirigente, tendo conseguido convencer disso o Ministro da Educação, Lopo do
Nascimento, o qual exarou um despacho impeditivo do meu regresso a Angola, uma
cópia que está em meu poder, tal como a correspondência trocada sobre este doloroso
assunto.
Não é
despiciendo deixar registado que nenhum daqueles dirigentes, acometidos de ultra
revolucionarite, que me apodaram malevolamente de traidor, permaneceu em
Angola.
Todavia,
ainda aguardámos até 1980, a revisão da injustificada e injusta decisão, ano em
que acabámos por desistir de regressar, optando por permanecer em Portugal.
Depois de termos
decidido assim, o governo português através, da Direcção Geral de Investigação
e Protecção dos Recursos Vivos e do Ambiente Aquático e pelo seu Director
Geral, dr. Mário Ruivo, perante o meu currículo em investigação das pescas em
Angola (Lobito, na Biopescas, da J.I.C.U,) por indicação da dra. Maria de
Lurdes Matafome minha colega e amiga e com base no objectivo de promover o
desenvolvimento da aquacultura no país, proporcionou-me uma bolsa de estudo no
estrangeiro, com vista a uma formação sobre ictiopatologia, tema inexistente
nos curricula dos Cursos de Medicina Veterinária portugueses, a base essencial
para a prevenção das doenças de peixes em produção animal aquática. Tal
desiderato, consumou-se durante o ano de 1977, em França, no Laboratoire
d’Ichthyopathologie do INRA, Institut National de la Reherche Agronomique.
Salvo casos muito
pontuais de agressividade em relação aos denominados retornados (que eu não
era, nem sou) exploradores dos «indígenas», com os nossos quatro filhos
reconstruimos a vida familiar, escolar (uma doutorada, uma empresária, um informático
director e uma licenciada) e profissional em Portugal, partindo praticamente do
zero, em termos materiais e com algumas dificuldades vencidas.
A actividade
profissional, de minha mulher foi desenvolvida como técnica de laboratório de
histopatologia, de apoio à ictiopatologia e à patologia de moluscos e maneio e produção
de zooplâncton, no INIP/IPIMAR e, ainda empenhada actividade sindical.
No meu
currículo consta toda a minha actividade profissional em Portugal como investigador
e professor convidado de 4 universidades (Porto, Algarve, Évora e Coimbra),
bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, comissário da EXPO 98,
representando o Ministério da Agricultura e Pescas e, a nível internacional,
como delegado nacional no ICES, International Commission for the Exploration of
the Seas, na FAO, Food and Agriculture Organization e, ainda, consultor da
JNICT (Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, hoje FCT,
Fundação para a Ciência e Tecnologia), da CEE/UE, da R.A. dos Açôres, da
Republica de Cabo Verde e da empresa dinamarquesa DANIDA.
Em Agosto de
1998 aposentámo-nos da Função Pública, embora eu tenha continuado a dar minha
colaboração docente à Universidade de Évora, até 2017, quando tomei a decisão
de interrompê-la, depois de convencer a directora do Departamento de
Paisagismo, Ambiente e Planeamento, Profª Maria Ilhéu, com base no progressivo afastamento
do meu meio profissional específico e consequente inevitável desactualização de
contactos e conhecimentos.
Concluindo, o
volumoso bilhete da TAAG que dá o título a esta crónica, mantém-se, em meu
poder, intacto, guardado como relíquia, mas permaneci e permaneço, apegado ao
meu país de origem que continuo a acompanhar e defender, tanto quanto posso.